“As literaturas de Macau estão vivas, são dinâmicas e renovam-se”
June 15, 2015 15:30:06
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2015.06.15 ponto final
A investigadora que termina mais uma estadia no território, não analisa apenas com as palavras escritas, mas também o papel da linguagem não-verbal nas obras de Macau – faz parte dela, considera.
Isadora Ataíde
Mônica Simas é professora de literatura portuguesa na Universidade de São Paulo. Desde os anos de 1990 estuda “as literaturas de Macau”, que englobam as línguas chinesa, inglesa e portuguesa. O espaço tem sido uma característica marcante destas literaturas, explica a investigadora em entrevista ao PONTO FINAL. A finalizar mais uma temporada de pesquisa e ensino na Universidade de Macau, Mônica está interessada nos “autores que mostram as idiossincrasias humanas”.
PONTO FINAL – Em 2007 publicou a sua tese de doutoramento “Margens do Destino: Macau e a Literatura em Língua Portuguesa”. Qual era a sua problemática de investigação?
Mônica Simas – O livro é uma reescrita da tese, é um livro para um público não-especialista sobre a cultura e a literatura de Macau, até então um tema inédito no Brasil. O meu problema era revisitar a literatura produzida em Macau entre 1887, ano do tratado de amizade e comércio entre Portugal e a China, e 1987, quando foi assinada a declaração conjunta e se deu início à transição. Na prática, o trabalho vai mais ou menos até 1999. Mas não era um trabalho sistemático, no sentido de revisitar todos os autores, mas sim de pontuar algumas questões. Em primeiro lugar, repensar os descobrimentos e as bases de soberania de Macau a partir da literatura. Na segunda parte, tentar desvendar a identidade macaense entre a comunidade metropolitana e a comunidade chinesa, tentar perceber as comunidades. A terceira preocupação foi o período de transição, como os autores liam e escreviam (não estou a falar de descrição) a reorganização da cidade. Queria compreender como os escritores se movimentavam diante das mudanças e, neste sentido, colocavam-se questões pós-coloniais. Porque foi na fase da transição que se acertou que Macau não foi uma colónia, o que implicou a necessidade da revisão histórica. Ou seja, a última parte é um regresso à primeira.
– Como define ou delimita o que é literatura de Macau?
M.S. – Eu não delimito. Desde os anos de 1980 as teorias literárias mudaram, passaram por uma revolução no sentido de pensar a literatura como objecto complexo, que não tem um lugar único, que não tem uma identidade essencial. As interpretações passaram a voltar-se para uma pluralidade de perspectivas. Uma das grandes questões da literatura de Macau é como produzir racionalidades, objectivar e definir sem reduzir. Normalmente a literatura é pensada em termos de leitores, de críticos… Se nós pensarmos que o sistema literário deve estar por completo no espaço físico de Macau, justificar-se-ia a ideia de que não há literatura de Macau, porque esse sistema, devido à administração colonial, nunca pode existir plenamente no território. A literatura de Macau tem autores que vivem no Canadá, a crítica está no Brasil e em França, ou seja, tem de se pensar na diáspora, a partir de quem escreve e estuda a literatura de Macau.
– A imprensa foi importante para o surgimento da literatura de Macau?
M.S. – Em tal sistema literário entra a importância dos jornais, nos espaços onde houve administração colonial é fundamental pensar na imprensa, porque era muito difícil a existência de editoras. O jornal é o grande meio de divulgação da literatura, não é possível pensar na literatura só como a produção de romance ou poesia, ficção. É preciso pensar nos cronistas, nos géneros menores da imprensa. Estes são o núcleo principal da literatura de Macau, não só em língua portuguesa, mas também em língua chinesa.
– Quais são as línguas da literatura de Macau?
M.S. – Eu estou a pensar em línguas: língua portuguesa, chinesa e inglesa. Penso em literaturas de Macau. Ou literatura de Macau, se pensar em literatura ‘multilingual’. As literaturas de Macau vão ter uma aproximação, que é o lugar. O lugar engendra as características da literatura de Macau, em língua chinesa, portuguesa ou inglesa. A quantidade de jornais de Macau é imensa. Com a imprensa vieram as literaturas, e as literaturas fazem as conexões com as identidades. Assim como se pensa a identidade mediterrânica, pode-se pensar na identidade de Macau a partir do Mar do Sul da China, do Sudeste Asiático. Ou seja, Macau tem uma identidade composta que passa por várias nações, etnias, comunidades e línguas.
– Quais são as características das literaturas de Macau?
M.S. – Há um estudo recente sobre os chineses de Macau. O Jean Berlie concluiu que existe uma identidade chinesa de Macau, e que esta se relaciona com o espaço. Macau engole-nos e o espaço imprime uma forma de se viver. Apesar dessa identidade não ser substância, estou a ler e a reler a literatura de Macau observando esta questão do espaço, do modo de viver. A experiência urbana está intrinsecamente ligada à literatura em Macau. Penso que entre as particularidades, as festividades, tradições com mais de 200 anos que se mantêm. Por exemplo, este ano participei do Dia dos Mortos no Templo do Bambu. Quem lê a descrição de Venceslau de Morais sobre a festividade, é como se a tivesse escrito hoje.
– Os autores de Macau traduzem a multiculturalidade, as etnias e religiões que convivem na terra?
M.S. – O mais importante é o humano. A relação das pessoas nos espaços é o que me interessa na literatura: as relações de alteridade, as idiossincrasias, os conflitos… Por isso tenho um interesse especial pela literatura da Fernanda Dias, que recontou um livro da chinesa Ling Ling, “Amores do Céu e da Terra”, contos publicados em Macau nos anos 50. É o livro que mais me emocionou nesta estadia. Um livro de ficção, com histórias simples, pequenos acontecimentos na cidade em torno de um restaurante, uma tasca onde se encontram personagens que vivem nas margens. São histórias de uma grande delicadeza, contam dificuldades, mas há uma cumplicidade entre as pessoas de v cumplicidade mudas. Um dos contos fala de um tugueses em torno de um restaurante, na regi literatura da Fernanda Dias, ela tradárias nações diferentes. Há cumplicidades mudas.
– Nesta temporada em Macau, quais foram as suas preocupações literárias?
M.S. – As literaturas dos últimos dez anos. Muita gente dizia que a literatura de Macau iria acabar, mas estas previsões apocalípticas não se confirmaram. Em Macau é comum esta ideia de que a literatura vai acabar, mas a verdade é que não acaba. As literaturas de Macau estão vivas, são dinâmicas e renovam-se. Estou a fazer um trabalho exploratório, tenho conversado com os institutos e fundações culturais, com os editores de língua portuguesa, chinesa e inglesa e com os autores. O Christopher Kit Kelen, professor da Universidade de Macau e editor em língua inglesa e chinesa, é um grande poeta. Ele tem feito um trabalho incrível de edições bilingues com os jovens escritores chineses, a quem ensina literatura criativa. Também fez uma antologia de língua portuguesa para o inglês. Também estou a recolher a crítica literária produzida nos últimos anos, a conversar com professores e instituições. Estive a dar aulas e conferências na Universidade de Macau.
– A mudança no espaço urbano reflecte-se na literatura desta década?
M.S. – Um dos papéis dos poetas é justamente escrever algo que se diferencie daquilo a que chamamos “ordem da globalização”. Os poetas fazem isso, muitas vezes recorrendo ao método do detalhe. Isso é uma constante na poesia de língua inglesa de Macau. Fala-se do néon dos casinos, mas também se fala das coisas que contrariam a ordem do capitalismo.
– Quem são os novos escritores que se destacam?
M.S. – Em língua portuguesa, o trabalho da Fernanda Dias pela questão do humano, os livros dela envolvem situações da cidade, personagens com dilemas, ela embrulha conflitos e depois desembrulha-os. Também porque o trabalho dela envolve a tradição cultural chinesa, há a sensibilidade de um fio condutor que vem da antiguidade aos dias actuais. E também o trabalho do Carlos Morais José, que tem um olhar muito sensível. Ele publicou um livro especialíssimo, “Anastasis”, um livro de poemas, poema em prosa e textos curtos, no qual percorre uma geografia que ele chama de “teometria”. Não são os lugares físicos, mas aquilo que eles têm de simbólico e que evocam uma relação entre o homem e o divino.
– Há problemas de comunicação entre os grupos linguísticos, sociais e étnicos de Macau, entre as comunidades?
M.S. – A professora Ana Paula Laborinho, no prefácio da antologia sobre os poetas de Macau, publicada em 1999, chamava a atenção para o facto de as comunidades portuguesa e chinesa terem trocado pouco ao longo do tempo. Por vezes não saber a língua evita problemas, mas isso também é um problema. A falta de comunicação existe. Há poucos cidadãos bilingues, os que o são, na sua maioria, são chineses que falam português. É a minha experiência, não tenho dados. É importante e necessário saber a língua para haver interacção. A língua é muito importante, mas a comunicação também passa pelo corpo, pelo gesto, pela acção. Eu pergunto-me, será que a língua é soberana?
– Essa é uma preocupação de trabalho?
M.S. – É uma pergunta sobre a qual tenho reflectido, também pelas minhas experiências como estrangeira e viajante. Um dos romances mais importantes para Macau é “A Quinta Essência”, da Agustina Bessa-Luís, que foi publicado em 1999. Neste livro, o Carlos José é um personagem que quer vingar-se de um capitão de Abril, que teve uma filha em Macau. É um personagem com vários apelidos (Santos, Pastor e Pessanha), que têm tudo a ver com a ocupação portuguesa: o missionário e o escritor. O personagem vem para Macau, mas desiste do seu protagonismo. É uma narrativa labiríntica, que envolve histórias dentro da história, com um romance chinês, no qual ele também se torna personagem. Enfim, este livro de Agustina é uma condensação dos 500 anos de relações entre portugueses e chineses em Macau, um livro de vários tempos. A Agustina sempre demonstrou que na comunicação não são apenas as palavras, mas também os olhares, os gestos. Talvez a necessidade de comunicar entre os humanos preceda a língua. Também estudo e observo este problema na literatura de Macau. Macau tem uma história longa, rica e complexa, os autores que mostram as idiossincrasias humanas ao longo destes processos são os que mais me interessam.