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As coisas tornam-se belas sem permissão

01/05/2021

Durante a limpeza da casa, o meu marido encontrou no armário vários sacos de pano com cordão, feitos de algodão e de toque desagradável. Tratavam-se de presentes de sapatos e vestuário, algo inútil deixado em casa há vários anos. “Têm utilidade?”, perguntou. Por nenhuma razão, fiquei apaixonada por um saco cinzento de linho misto com algodão, cujo tecido liso passou a ter bolinhas pequeninas devido ao longo tempo que passou fechado no fundo da gaveta. Mas bastou uma lavagem para dissolver a goma dura do pano e este ficar macio. Quanto mais se usar, mais o seu toque se irá parecer ao de uma t-shirt muito usada, mas é mais durável e resistente.

 

Não o querendo deitar fora, cortei a parte do logotipo, desfiz o saco, dobrei-o em quatro camadas e fiz a costura. Como não sou boa a costurar nem tenho muita destreza de mãos, o ponto ficou com cerca de meio centímetro de comprimento. No entanto, a durabilidade e a resistência são os únicos critérios para um trapo e não exijo mais de mim própria. Coloco-o na mesa de jantar, e quando um café ou um chá vertem, o trapo está ao meu alcance, o que é muito conveniente. Lavo-o sempre após a lavagem dos pratos de jantar e, dias depois, as partes duras ficam macias. Os objectos são sempre assim: com o uso quotidiano, começam a ter um jeito cada vez mais terno, gastando a dureza inicial e ficando cada vez mais próximos de nós.

 

O meu marido adora trapo do saco velho feito por mim porque ele tem o hábito de colecionar trapos velhos, aqueles cosidos de roupa e toalhas usadas, e não trapos industrializados. O trapo para limpeza levado para a escola pela sua geração era sempre feito pela mãe. Entretanto, actualmente, a maioria das famílias compram-nos numa loja de móveis e decorações, o que é mais conveniente, mas falta o sentimento nostálgico.

 

Na sua coleção, alguns trapos velhos estão gastos e com buracos e outros estão compostos por retalhos de tecido de diferentes tamanhos. O meu favorito é um trapo misturado com um tecido com padrão floral e cosido com panos de diferentes modos, que se calhar foram selecionados com cuidado pelo criador ou então foi apenas por mero acaso. A sua coleção de trapos faz-me sempre lembrar o ボロ (farrapo), feito por residentes da região de Tohoku e da de Hokuriku, entre outras regiões frias do Japão. 

 

Na era em que os vestuários não eram tão acessíveis e não mudavam tão frequentemente como agora, para os residentes locais das referidas regiões, onde não abunda o algodão, um quimono quente era algo bastante precioso, que passou de uma geração para a seguinte com várias costuras e vários adesivos, formados após a reparação das brechas e dos buracos. As costuras meticulosas e regulares e os retalhos sobrepostos e coloridos fizeram com que as pessoas valorizassem mais as coisas dessa era devido à eficácia dos materiais. ボロ em japonês significa farrapo, que foi descoberto pela primeira vez no Período Edo, em que as pessoas vestidas de farrapo pareciam manifestar a sua pobreza e sentir-se envergonhadas por causa disso. Mas, hoje em dia, o farrapo está cheio de significados culturais e históricos. A ocasionalidade, a sua incompletude e a recusa do desperdício mostram o valor e a estética culturais tradicionais do Japão.

 

Há pouco tempo, fui ao Museu de Arte da Tama Art University, em Tóquio, ver a exposição da coleção de tecidos de Kazumi Sakata. Fiquei, durante muito tempo, em frente de uma colcha esfarrapada branca que me trouxe uma comoção inexplicável. Os tecidos rasgados com diferentes texturas encontraram-se e conectaram-se acidentalmente. Será que todos eles tinham sido macios e brancos, branco da cor do leite, branco da cor do arroz ou amarelo claro? Mas, com o passar do tempo, tranquilo e lindo, em que os retalhos sofreram com as lavagens, as telas com tamanho e jeito diferentes passam a ter aparências harmoniosas e próximas. 

 

Hoje em dia, o farrapo tornou-se uma moda, mas às vezes sinto-me estranha quando me deparo com vestidos das marcas de moda feitos de farrapos. Afinal de contas, comparado com algo nascido naturalmente, os farrapos artificialmente produzidos perdem o encantamento mais macio e verdadeiro. 

 

Um dia, fui à loja de tecidos da Sra. Tsuchiya. “As coisas tornam-se sempre mais belas sem permissão”, disse-me, quando falávamos sobre o porta-copos de tecido feito por ela própria. Após lavagens frequentes, o porta-copos passou a ser muito compatível com a sua casa e mesa velhas. Ela não o lava por questões de beleza, mas esta aumenta a cada lavagem.

 

O trapo e farrapo consistem mais numa forte vontade de lidar com a vida do que na sua beleza superficial. Mas quando o criador não persiste na beleza, as coisas vão ficar mais belas sem permissão.

 

um trapo da coleção do marido
um trapo da coleção do marido

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