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Estrada de Coelho do Amaral, nº 2G Memórias privadas, documentos artísticos e o local da arte moderna e contemporânea de Macau (I)

01/04/2021

Blue Gate Crossing
Há um filme de Taiwan chamado “Blue Gate Crossing”, sobre o azul da juventude que nunca desvanece. Tanto quanto me lembro, existe também um portão azul perto das Ruínas de São Paulo em Macau. Quando andava no liceu, vi, num prédio de três andares atrás desse portão, o filme “Yi Yi (As coisas simples da vida” de Edward Yang), exibido pela Associação Audio-Visual CUT, e vi, também, o teatro físico da Comuna de Pedra. A experiência dessas imagens e desses espaços formaram, pouco a pouco, as minhas primeiras memórias da exposição à arte moderna e contemporânea de Macau.

 

Alguns anos após ter regressado a Macau, concluída a minha formação universitária fora do território, tanto a Associação Audio-Visual VUT como a Comuna de Pedra tinham-se mudado, e quase que me esqueci daquela casa. Foi só recentemente, quando folheei uma antiga acta de uma reunião de um grupo de artistas locais, que descobri que, no início dos anos 90, aquele era um espaço local activo de arte moderna onde se acendeu, forte, a faísca da arte moderna de Macau.

 

Uma malta com 120 litros de ideias
Esta publicação antiga foi lançada em 1999 enquanto acta referente ao primeiro aniversário do Centro Internacional de Artes Visuais de Macau. As primeiras páginas mostram fotografias de cada andar do espaço: o rés-do-chão e o primeiro andar são salas de exposição, onde estavam expostas pinturas expressionistas abstractas e obras de técnicas mistas; no segundo andar, estão o escritório e a sala de reuniões; e no andar de cima está o estúdio com um telhado de telhas metálicas, cheio de cavaletes, ferramentas e pinturas inacabadas, onde se pode imaginar, atravessando o tempo e o espaço, o suor de quem ali trabalhava e a sua extrema dedicação à criação de obras artísticas.

 

Foto do espaço na página interior da Ata da Reunião do Centro Internacional de Artes Visuais de Macau
Foto do espaço na página interior da Ata da Reunião do Centro Internacional de Artes Visuais de Macau

 

O fundador do Centro é o falecido artista de Macau, Kwok Woon (1940-2003), que, no seu livro, escreveu sobre a origem do Centro: “Há 18 anos, quando acabara de me mudar para Macau, vivi, com a ajuda de amigos, transitoriamente num canto do telhado no terceiro andar de uma fábrica de impressões e aí trabalhei nas minhas pinturas. Dezoito anos depois, na dolorosa busca de refúgio para a alma, voltei, inesperadamente, a esse mesmo velho sítio. Desde então, este edifício de três andares fez-nos aquilo que somos: com fé e perseverança, transformámos, em 9 meses, um antigo edifício fabril abandonado durante anos num espaço de actividades de quase 4000 metros quadrados...”.

 

Outro artista local, Ung Vai Meng, recorda que, no dia da inauguração, “a área ao redor das Ruínas de São Paulo estava repleta de artistas, funcionários da cultura, residentes e estudantes curiosos que ali passavam”, e que o espaço “não se vendia, não recebia comissões e era dedicado à promoção do intercâmbio artístico”. “Macau é mesmo um sítio adorável em que há muita gente que se dedica inteiramente à arte”, exclama Ung Vai Meng (Prefácio da “Nova Vaga de Macau”).

 

Espalhando o brilho das estrelas
Embora a publicação não apresente materiais em abundância, regista, mesmo assim, mais de uma dúzia de exposições, seminários e participações em exposições no estrangeiro realizados pelo Centro e que decorreram no curto período de apenas um ano desde a sua criação, o que retrata uma época em que, provavelmente, o intercâmbio entre as comunidades de arte dos chineses locais, dos macaenses e dos imigrantes estava no seu auge (falarei sobre isto mais tarde se me for proporcionada oportunidade para tal) e, ao mesmo tempo, em que a arte moderna de Macau estava na sua era mais vigorosa e dinâmica.

 

Todavia, numa cidade que se desenvolve a um ritmo veloz, espaços artísticos que alimentam a alma como este estão condenados a existir e florescer de forma efémera. Após o falecimento de Kwok Woon em 2003, a sua esposa, Joana Ling, decidiu alugar o espaço à Associação Audio-Visual CUT e à Comuna de Pedra, a fim de retomarem o seu espírito original. No entanto, devido à alteração de utilização do espaço pelo proprietário principal, os dois grupos acabaram por sair do prédio por volta de 2012 (ver o artigo “A última noite da Estrada de Coelho do Amaral, nº 2G”, em “Ox magazine”, edição 02).

 

Ao escrever estas palavras, não consigo deixar de pensar em quantos belos recantos de arte destes em Macau terão desaparecido com o desenvolvimento da cidade. E nos documentos artísticos espalhados por toda Macau, quantos rastos poderemos encontrar?

 

Provavelmente, Woon sabia que os pensamentos e as ideias dos artistas apenas são como estrelas dispersas no decurso da história. No prefácio da publicação, conclui com as palavras do esteta Zhu Guangqian: “O longínquo passado é apenas um céu escuro como breu, e a única forma de ainda podermos conhecer este céu escuro é pelo brilho raro das estrelas espalhado por pensadores e artistas. Estimemos esta luz! Tentemos também nós espalhar algumas estrelas para que o seu brilho ilumine o futuro, tal como o faz com o passado.”

 

Estrada de Coelho do Amaral, nº 2G, pintada pelo artista Filipe Dores.
Estrada de Coelho do Amaral, nº 2G, pintada pelo artista Filipe Dores.

 

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